terça-feira, outubro 30, 2007

Quando a Crônica Vem da Música

As Vitrines (Chico Buarque)

Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha prá mim
Não faz assim, não vá lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo o salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão


Naquele mini-shopping do centro da cidade, ela costumava transitar. Linda, os olhos azuis repletos de mistério causavam no pobre Vigia do estabelecimento uma admiração profunda, mais por enternecimento pelo seu ar triste e solitário que pela atração física. Dela, ele nada sabia a não ser que por ali passava sempre naquele mesmo horário, com passos curtos, vagarosos e tímidos, diariamente muito bem vestida e olhar firme. Algumas raras vezes, freqüentava o cinema daquele local, nunca acompanhada. Geralmente, usava o corredor daquele mini-shopping como uma travessia, um atalho. Era a impressão que o guarda, daquela mulher, guardava para si. Nunca ousou interferir seu caminho para fazer pergunta, nunca procurou saber nenhum outro detalhe de sua vida. Tudo o que ele sabia era que por ali ela passava, às vezes ia ao cinema e saia rindo da sessão. Não precisava saber nada além disso, pois já se apaixonara por aquela mulher, aparentemente muito mais jovem que ele. Qualquer informação que pudesse ser acrescentada sobre a tal poderia destruir o encanto que em seu imaginário estava idealizado. Para o vigia do mini-shopping, ela era intocável. Os passos lentos que ela cadenciava pela galeria eram iluminados pelas vitrines das lojas. Com os olhos, ele apenas acompanhava sua trajetória. Aquele corredor era como uma cidade e suas calçadas eram as vitrines onde poderiam se encontrar expostos vários utensílios - de ferramentas a cosméticos rejuvenescedores. Naquele vão, espremida entre uma e outra loja, sua musa era a única personagem. Cada luminária do corredor parecia a contagem de um tempo mágico, um dia seguido do outro. Ela atravessava estes dias sem que pudesse notá-lo. Ele a seguia discretamente, somando-se às sombras produzidas pelas luzes - das vitrines, das luminárias, dos letreiros - recolhendo, absorto, toda esta poesia que ela entornava por seu caminho.