Cinco e meia da manhã. O despertador soa como os gritos de desespero dos moradores de Pompéia, quando foram soterrados pela lava do Vesúvio. Ela abre os olhos que logo ficam marejados, frutos de sono e sofrimento. Ele ainda dorme, mas já é hora de levantar. Ela o balança carinhosamente, até que desperte, e volta a dormir. Ele lhe beija a testa, diz-lhe para continuar deitada, pois pode se arranjar sozinho. Sai do quarto de cuecas, com as calças e a camiseta penduradas no ombro. Veste-se ali mesmo no outro cômodo da casa, o único, além do quarto onde dorme o casal e os dois meninos. Bebe um café requentado e busca dentro da geladeira algo para comer. O refrigerador elétrico apenas existe em seus sonhos. O que ele abre à procura de comida é uma caixa velha de isopor cheia d'água, que ontem fora o gelo que conservou, por algumas horas, a pouca comida que dividiu com mulher e filhos. Passavam fome. Comiam quando podiam, e muito pouco podiam. Os meninos ainda tinham o que comer na escola. Menos mal. Ele e a mulher raramente se alimentavam, pois as crianças recebiam preferência. Era sensata sua distribuição. Com fome, saiu para o trabalho. Sua roupa de serviço era uma calça rota, que ganhara de um antigo patrão há mais de ano. A camiseta estampava a foto de um candidato à prefeitura da cidade, seguido do seu nome e número. O trabalho consistia em ficar numa esquina na área central, empunhando, de sol a sol, uma bandeira com a mesma estampa da camiseta. Sua esperança era do patrão ir ao segundo turno. Não que ele fosse um homem politizado, preocupado com a escolha do representante municipal. O que lhe ocorria era que seu emprego temporário duraria um pouco mais de tempo, caso houvesse um próximo turno de decisão eleitoral. Garantiria, assim, um tempo maior de sobrevivência para a mulher e os meninos. Debaixo de um sol de rachar concreto, ele cumpre seu papel no decorrer da campanha eleitoral. O salário é de miséria, mas garante um pãozinho pra cada um na mesa do café. Ou na falta da mesa, sendo esta, feita de ripas pregadas numa tábua velha. Dia de eleição. Ele acorda mais cedo do que de costume para poder votar, pois logo tem de estar na mesma esquina, com a mesma camiseta e a mesma bandeira. Com o mesmo cansaço e o mesmo sofrimento, o mesmo suor e o mesmo calor. Sua vida é a mesma. Mudam os governos, mas sua vida não muda. Vive na mesmice.
Na entrada do seu colégio eleitoral, Ele reconhece o rosto que vê todos os dias, estampado na bandeira, cumprimentando e abraçando aqueles pobres miseráveis. Aproxima-se do político. Precisa ter com o patrão, precisa saber se aquilo que ouviu falar era mesmo verdade. Não conseguiu aproximação, pois os seguranças apanharam-no e o levaram para uma pequena sala dentro do colégio:
- O que você queria com o doutor, rapaz? - Perguntou o segurança negro, de óculos escuros e bigodinho ralo.
- Desculpa seu moço. Não sabia que era proibido falar com o patrão.
- Você trabalha pra ele? - Questionou o segurança mais mulato, de terno preto e camisa branca, impecável.
- É. Eu fico o dia inteirinho, debaixo de um sol fervendo a moleira, segurando uma bandeira com a cara do homem. Deve de ser ele que me paga aquela mixaria.
- Mas o que você queria lhe dizer? - Tornou a perguntar o negrão, com voz forte.
- Queria saber se era verdade o que me disseram ontem. Que ele ia dar um dinheirinho a mais pra quem escrevesse os números da bandeira naquela maquininha do governo. Se for verdade eu aceito. Meus meninos estão magrinhos demais.
Depois de confirmar com a cabeça, sinalizando um sim, o mulato se surpreendeu com a audácia daquele pobre desgraçado:
- Então vou lá falar pra ele me pagar que eu faço o serviço. Não sei pra que é que ele quer tanto aqueles números na maquininha. Não entendo mesmo dessas modernidades de hoje.
- Vai lá falar com o patrão? Uma ova! Toma esse dinheiro. Coloca os "números na maquininha" e vai embora. Mas não chegue nem perto do Doutor. Anda! Some daqui!
Ele saiu, votou sem mesmo saber o que estava fazendo. Apenas sorria, pois iria ter uma digna refeição. A mulher e os filhos teriam orgulho. Iriam sorrir. Mal sabia ele que havia vendido o único direito que ainda lhe restara. Muitos outros, como Ele, trocaram o voto por dinheiro, comida, sapatos novos. O candidato ganhou a eleição logo no primeiro turno e ele já não tinha mais emprego. Dois meses depois da posse do novo prefeito, o terreno onde ficava seu barraco, e o de muitos outros miseráveis, fora doado para uma grande indústria americana. Depois de muitas manifestações da população, lutando pelos seus casebres, a polícia invadiu o local, a mando do prefeito, e colocou tudo no chão. Não sobrou barraco em pé. Muitas pessoas morreram no confronto com a polícia e ele via tudo acontecer. Mas não sentia revolta nem tristeza. Viu um dos seus meninos levar um tiro e falecer, e não lhe caíra uma lágrima. Não sentia nada além da fome. Mais à noite, deitado na calçada com a esposa e o filho que restara, sentia frio, além do roncar do estômago. Olhou para o seu teto de estrelas e balbuciou:
- Nada como. Um dia após o outro...
Nenhum comentário:
Postar um comentário